domingo, 19 de janeiro de 2014

O tribunal artístico: O processo de hierarquização da música


Volto a escrever sobre esse tema, com a finalidade de esclarecer de uma vez por todas, porque a hierarquização artística sempre é necessária.

Recentemente a discussão a respeito do preconceito musical/artístico foi acalorada pela estudante que escreveu uma dissertação sobre o funk. Não li o trabalho, mas li uma entrevista com a autora. Pelo visto o trabalho tenta mostrar o funk de outra forma, uma espécie de defesa de que o funk só é considerado música ruim por conta do preconceito. Isso divide opiniões no meio acadêmico e musical e, o debate observado é bastante tendencioso e sem consistência. Mostrarei porque a hierarquização artística é necessária e inexorável. Tentarei ser o mais objetivo possível.

Um questionamento (que a princípio parece ser “matador”) de quem escuta músicas tidas como ruins, é alegarem que: “Se tal música representa uma grande quantidade de pessoas, o que faz dessa música algo de qualidade ruim?” Esse deve ser o questionamento mais usado para quem escuta arrocha por exemplo. Pois bem ... na verdade, a qualidade artística é definida através do que cientificamente se entende como “conflito simbólico”. Os conflitos simbólicos dos agentes sociais irão definir o que é “boa arte” e “arte ruim”. Isso acontece através de uma análise estética da obra. Nesse conflito, os poderes são distintos. Um especialista tem poder simbólico maior do que um sujeito qualquer. Isso acontece porque o especialista tem maior legitimidade no meio. Isso existe não só na música, mas em todos os tipos de arte. Em matéria de arte, a voz do povo não é a voz de Deus. Isso é um absurdo? Não!

Se a voz do povo fosse a voz de Deus, possivelmente todos os filmes de Van Damme ganhariam importantes premiações, e isso seria uma injustiça artística. No cinema, o poder de consagração é bastante concentrado, as premiações são definidas pela votação de especialistas. Na música o processo é mais fluido, as premiações não tem tanto impacto e, nem sempre são definidas por especialistas. Mas ainda assim, existe um processo de consagração, que se dá através das opiniões emitidas por especialistas e músicos principalmente. Programas de TV, revistas, opinião da crítica, academia, etc, são meios de consagração. Nesse conflito, o “povo” também participa, mas os poderes também são bastante distintos. Obviamente, um intelectual tem maior poder simbólico do que um sujeito analfabeto. É através de todo esse processo que os valores simbólicos são definidos, valores que estão em constante mutação. Nesse sentido, fazer afirmações que levam a crer que funk e arrocha são tratados como a escória da música por puro preconceito, são colocações levianas e injustas. Ainda que sejam músicas que representam uma grande quantidade de pessoas, essas pessoas (em sua maioria) tem pouco poder no conflito simbólico, pois não são especialistas, nem possuem nível de instrução legitimado.

Tudo que disse anteriormente pode parecer escroto, mas quando estabelecemos comparação com outros tipos de arte, fica mais fácil notar que não. Imagine se a voz do povo fosse muito “escutada” na literatura. Possivelmente 50 Tons de Cinza seria considerada uma obra de arte suprema, correto? O livro vendeu mais do que água no deserto, mas isso não quer dizer que dentro da crítica literária, seja tratado como uma grande obra. Na música é a mesma coisa, se o volume de vendas (que de certa forma ilustra a vontade do povo) fosse parâmetro, Pablo seria um artista supremo e Yamandu Costa seria um zé ruela.

É uma falácia também a afirmação de que o preconceito de classe e de cor tem um peso enorme no processo de legitimação. Recentemente vimos que as chamadas “Bandas Coloridas” foram achincalhadas, mesmo sendo um estilo de brancos de classe média. O sertanejo universitário está longe de ser música da periferia, e ainda assim não tem prestígio na crítica. Existem inclusive severos questionamentos dentre pessoas influentes na música, em relação à Bossa Nova ter posição tão privilegiada no campo musical brasileiro. Os preconceitos existem, mas não são tão decisivos quanto se pensa.

Qualidade artística é algo que está no campo da subjetividade total, mas é necessário que os especialistas tenham poder simbólico maior de consagração, ainda que eles carreguem valores preconceituosos diluídos em seus posicionamentos. É melhor assim do que esperar que o mercado por si só defina o que presta e o que não presta. É por conta do conflito simbólico desigual que eu posso vender 10 mil CDs e ter maior prestígio do que alguém que vendeu 500 mil. Sendo mais claro, é por conta disso que Yamandu Costa não é injustiçado, mesmo não sendo rico, pois ele busca enriquecimento simbólico, e não econômico. Enquanto isso existir, está garantido que ele não dará um tiro na cabeça por ser um dos maiores violonistas do país e do mundo.

Qualidade musical existe, mas não devemos sentir vergonha por gostar de arte considerada vulgar. Devemos apenas saber reconhecer, separar o que é supremo do que é banal ...