domingo, 23 de fevereiro de 2014

Dissecando os "justiceiros"

A nova polêmica (uma das novas) do momento são os justiceiros, aqueles que resolveram com suas próprias mãos fazer aquilo que o estado não faz: combater o crime. Que bonito, não é mesmo?

Quem recentemente se envolveu na polêmica foi a jornalista Raquel Sheherazade: aquela que a nível de nome complicado, só perde para Friedrich Nietzsche e, a nível de encrenca, só perde para mim. Hehehe ....

Raquel deu uma declaração que, em rede nacional, seria como se jogar do precipício esperando que as pessoas aparassem.

Eu até gostaria de concordar com a Raquel, mas não posso. Na verdade, o ideal seria se o contexto me desse subsídios para concordar. Mas em busca do compromisso com a realidade, não dá para concordar com uma declaração encharcada de individualismo.

Pelos meus 28 anos de vida, me arrisco a dizer que pelo menos 60% dos justiceiros dão motivos para serem amarrados no poste também. A final, estamos num país hipócrita, em que ladrão rouba ladrão e ainda tira onda de correto. Alguém já amarrou no poste um universitário que cobra para fazer monografias? Já amarrou aquele dentista que vende notas fiscais para quem quer sonegar imposto de renda? Já amarrou aquele professor que dá 20 minutos de aula e cai fora? Já amarrou aquele médico que “trabalha” 200 horas por semana? E aquele seu brother que fraudou o concurso da prefeitura pra você passar? Será que Raquel defende que esses sejam amarrados no poste também, ou amarrados em cima do formigueiro?

No entanto, é claro que um assunto como esse, jogado nas redes sociais, ganha todos os adereços e coloridos possíveis, típicos da nova “era glacial”, em que o discurso politicamente correto é sempre o melhor. Nesse sentido, chovem aqueles discursos míopes e raivosos. Alguns levam a discussão completamente para a questão do racismo, de tal forma que fica parecendo que viram um negro na rua e foram lá amarrar o cara. O racismo pode ser um agravante, mas acredito que a essência do problema está na construção de valores a respeito dos crimes, uma construção que perpassa pela nossa cultura individualista. Existe conflito de classes também, mas não é algo maniqueísta, em que o sujeito de classe média quer deliberadamente botar pra lascar em cima do pobre. Esse conflito está nas estrelinhas. Se alguém de classe média resolver praticar assalto a mão armada, provavelmente será tratado de forma bastante parecida com o tratamento que se dá ao pobre. Da mesma forma, se um pobre bater o ponto e cair fora do trabalho, também será tratado de forma parecida como alguém de classe média. É uma construção que resulta na divisão entre: crimes toleráveis e intoleráveis.

Mas a final, o que é o crime inescrupuloso? O crime inescrupuloso é aquele que perturba a ordem da sociedade, que causa transtorno de forma direta. Cheguei em casa, fui usar meu computador e ele não estava lá. Descubro que fui roubado, fico puto e quero matar o cara. Esse computador pode ter sido comprado com dinheiro sujo, pode ter sido dinheiro de suborno por exemplo, mas e dai? Suborno não causa transtorno, não é mesmo? Suborno não deixa ninguém puto, com medo, desesperado, apreensivo, etc. O crime só é inescrupuloso a partir do momento em que alguém é afetado de forma direta. Por isso que quando alguém desvia dinheiro público, a revolta de cada pessoa é menor, pois ela não sofreu transtorno diretamente, mas sim de forma indireta. Inclusive o pobre reproduz isso da mesma forma. Se me assaltarem, quero meter a porrada, mas se fizerem gato de energia na minha rua, eu nada faço. Acredito que esse é o ponto X da questão.

E onde está a causa disso? A causa está no individualismo de nossa sociedade, que costuma analisar em primeiro plano o lado individual e, depois, se der tempo, o lado social. Quando eu recebo suborno de alguém, naquele momento ninguém se sentiu afetado, então eu ignoro todo o “efeito borboleta” que isso irá causar. O professor dá 20 minutos de aula e cai fora justamente porque os alunos não se sentem afetados, em sua maioria. Ninguém lembra que isso representa uma desonestidade.

Dessa forma, quando as pessoas veem os crimes sendo cometidos, elas se colocam no lugar da vítima, fazendo julgamento a partir disso. Essa é a causa da ação dos justiceiros. Eles não combatem o crime, querem apenas manter a ordem social. “Foi fulano, mas poderia ter sido eu sendo assaltado”. Imbuídos desse pensamento individualista, as pessoas promovem a auto proteção, com a faixada da “Justiça do cidadão comum”.


Os justiceiros estão completamente errados. Mas você acha que não reproduz esses valores no cotidiano também? Acha que eu e você estamos livres disso só porque não metemos a porrada num batedor de carteira? Até que ponto você confunde justiça com auto proteção? Pense nisso ...